A memória e as marcas contemporâneas

João Anzanello CarrascozaJoão Anzanello Carrascoza
Escritor, doutor em Ciência da Comunicação pela ECA/USP e docente do PPGCOM-ESPM.

A mitologia grega consagra à figura de Mnemonise a tarefa de zelar pelos conhecimentos mais preciosos do universo, sobretudo por aqueles que advêm das experiências vividas. Deusa da memória, Mnemonise é a guardiã dos arquivos nos quais tudo o que se passa na esfera divina e humana é gravado. Lá estão todos os fatos históricos e as recordações que deles se têm. Lá estão os acontecimentos reais e virtuais. Como um hard-disk, ela guarda os tesouros acumulados no mundo concreto e, igualmente, nas camadas da imaginação.

O segredo desse cofre – ou em linguagem contemporânea, a sua senha de acesso –, é dado pelos afetos e, por isso, a ciência quase nunca pode abri-lo. Os afetos são os gatilhos que acionam os circuitos da memória e, assim, podemos preservar do esquecimento a vida que ali está, fresca e vicejante, ou estática e vitrificada.

É o sentimento que leva o milionário cidadão Kane a se lembrar de seu rosebud. É a madeleine mergulhada no chá que evoca em Proust a sua vivência do passado, motivando-o à tentativa de apreender o tempo perdido ou ganho, como nos lembra Drummond nos versos de sua Elegia: “Ganhei (perdi) meu dia”. É o hablador que, nas aldeias indígenas, perpetua por meio de narrativas a sabedoria dos antepassados.

São os sentidos que nos transportam a esse universo paralelo, labiríntico feito os textos de Borges, onde buscamos a matéria leve de que são feitos os sonhos, mesmo se submetidos ao aço da realidade. Wahool dizia que o olfato tinha o maior poder de retorno ao passado. Sim, um cheiro nos reconduz no ato a um tempo já vivido. Mas o que pode nos transportar, instantaneamente, ao aconchego uterino, senão a voz do coração?

É por meio de histórias que podemos regressar, num vôo sem escala, ao templo de Mnemonise. Não por acaso, ela gerou as nove musas do Olimpo, cada uma responsável por uma arte. Uma história nasce do vivido, de uma sensação a qual o criador almeja reconstruir, atualizar, operar o milagre de sobrepor à pele das coisas uma nova camada de vida. Depois de acionada a memória, a imaginacão entra em cena, injetando sangue no novo relato que, por sua vez, vai fazer parte, igualmente, do arquivo oceânico da nossa memória coletiva. Kathâsaritsâgara, chamavam os indus a esse mar de histórias.

Talvez seja esse o motivo pelo qual o amor só exista depois de um caminho percorrido, depois que os amantes adquiriram um passado, uma memória. Talvez seja esse o motivo pelo qual as paixões se diluam, uma vez consumida a primeira labareda de seu incêndio – as paixões não têm futuro porque não consolidam um passado e, sem passado, não há memória.

Assim também no âmbito empresarial, as corporações necessitam acionar a memória afetiva de sua comunidade para delas se aproximar. Por meio de histórias, consubstanciadas em sua publicidade, em seus materiais institucionais, os anunciantes podem, de forma envolvente, interagir com seus públicos, gerando o pathos com a sua marca. Um comercial como o “Primeiro Sutiã”, da Valisère, ativa o nosso imaginário, ao atualizar o rito de passagem de uma menina à condição de mulher. “Hitler”, da Folha de S. Paulo, outro comercial clássico da propaganda brasileira (e mundial), nos lembra os erros do passado e as mentiras sinceras por trás das falsas verdades.

Mas a memória pode falhar se alijamos Mnemonise do nosso percurso e, então, emerge a saudade. A saudade, escreveu Clarice Lispector no Livro dos prazeres, é um pouco como a fome. Só passa quando se come a sua presença.

Para nos fazer presentes, aqui e agora, precisamos contar a nossa história. Sejamos homem ou empresa. Toda história, por mais simples que seja, sempre é uma chance de lembrarmos de nossa condição e – ante a sua dor e a sua delícia –, compartilharmos afetos.

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